terça-feira, 24 de novembro de 2009

O que eu faria se estivesse na Universidade

Kosseleck é um historiador austríaco que apresentou duas categorias para compreender como o homem se orienta no tempo em qualquer período, em qualquer época. A primeira categoria, o espaço de experiência, designa todo o passado que é presente para um indivíduo específico ou para uma coletividade, tudo que é lembrado e, também, o que não é racionalizado e inconsciente. É o passado presente. A segunda categoria, o horizonte de expectativas, é o que o indivíduo espera que venha acontecer no futuro, suas esperanças, seus medos, suas angústias e desejos presentes em relação ao que ainda não aconteceu. É o futuro presente. São duas categorias universais, que organizam a experiência humana no tempo, condições necessárias para o próprio fazer históricos dos sujeitos. Não há história, não há ação que não seja influenciada por um espaço de experiência e um horizonte de expectativas.
São categorias universais, mas não são categorias que se relacionam da mesma maneira em qualquer período. A relação entre elas pode ser historicizada. Durante a Idade Média, por exemplo, andavam praticamente juntas, próximas. Os homens não esperavam do futuro nada de muito diferente do que tinham experimentado no passado e do que experimentavam no presente. Além do mais, a escatologia católica traça um limite para o horizonte de expectativas, assim, mesmo quando o indivíduo deixava-se pensar em um futuro muito distante, tinha o final dos tempos como limite.
Várias circustâncias alteraram a relação entre o espaço de experiência e o horizonte de expectativas na transição do mundo medieval para o mundo moderno. As viagens ultramarinas, por exemplo, trouxeram novas experiências e criaram novas expectativas para o futuro. A Reforma, que quebrou um espaço de experiência consolidado, o de hegemonia da Igreja Católica Romana. Copérnico, que também destroçou um espaço de experiência antigo, abrindo as portas para novas possibilidades, para um futuro diferente do passado. Finalmente, a revolução industrial expandiu a constante diferenciação, o distanciamento entre o espaço de experiência e o horizonte de expectativas para um público mais amplo. A síntese, a grande formulação conceitual deste distanciamento é a idéia do progresso. Hoje é melhor do que ontem e amanhã será melhor do que hoje. Kant é um dos grandes filósofos do progresso, e um dos objetivos de sua filosofia é provar que o amanhã não só pode ser diferente, como pode ser melhor do que hoje e ontem. Em suma, é característica essencial do período moderno, quase sua definição, a crença no progresso, na novidade como algo melhor do que o antigo. É o espaço de experiência se afastando, se distanciando de um horizonte de expectativas cada vez mais amplo, cada vez mais carregado de desejos e de esperança. No mundo político, a Revolução Francesa seria o grande marco histórico do progresso, do afastamento entre experiência e expectativa. A partir das reflexões de Kosseleck, e por ainda estamos no mundo moderno, é justo especular que ele ainda tinha o mundo contemporâneo como imerso nesta diferenciação, nesta separação quase radical entre espaço de experiência e horizonte de expectativas. No entanto, julgo ver algumas sintomas, sinais de que a sociedade atual começa a novamente alterar esta relação. Vejamos dois sintomas que julgo essenciais para meu diagnóstico, dois livros, um de ficção e um de história. O primeiro, Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley. O segundo, a economia moral da multidão inglesa do século XVII de Thompson. Os dois, ao meu ver, mostram incontestavelmente que há, no mundo atual, no seio das sociedades contemporâneas, uma angústia, uma preocupação com o futuro que inverte a idéia de progresso, inverte a noção de que o futuro será melhor do que hoje e totalmente diferente. O dois dizem, e explicarei logo como, que o futuro será parecido com hoje, só que pior, com tudo que hoje tem de ruim amplificado.
Vejamos o caso de Huxley. Descreve um mundo horrível, em que tudo que é visto como progresso científico em sua época, quando Huxley escreveu o livro, é apresentado de um ponto de vista negativo. Em que o homem deixa de ser livre, em que é completamente dominado pelo Estado e suas técnicas científicas para melhorar a sociedade e os homens. O que Huxley quer dizer, sua mensagem, é que tudo aquilo visto como progresso técnico e científico pelo homem do seu tempo é uma maldição e tornará o futuro uma tragédia, uma prisão. Assim, Huxley não só não compartilha do entusiasmo de Kant com um futuro melhor e diferente, como também diz que o futuro não será muito diferente do que já aconteceu no passado, das experiências adquiridas, e das experiências do presente. Será apenas um passado presente amplificado. É um pessimismo, uma negação do progresso que leva Huxley a apresentar, como solução, uma volta ao passado, uma revalorização de atitudes antigas, que desapareciam no mundo presente, como a descentralização do poder e leituras humanistas. Portanto, o livro de Aldous é um sintoma de uma revalorização de um espaço de experiência e tentativa de aproximá-lo novamente do horizonte de expectativas. O passado também teve coisas boas, utilizáveis e que devem ser mantidas e, por terem desaparecido do mundo atual, devem ser restaurados no futuro, no horizonte de expectativas.

O estudo de Thompson não é muito diferente. Ao estudar o que chama de economia moral da multidão inglesa do século XVII, Thompson estuda, como ele próprio diz, uma forma diferente de relação entre os agentes econômicos, entre produtores e consumidores, do que a postulada pelos economistas clássicos e liberais do século XX e que norteiam até hoje a economia mundial. É uma economia que não permite tudo ao produtor, que não dá a ele liberdade total para fazer o que bem entender com o que produz, para conseguir os melhores preços. Ele teria uma obrigação com os camponeses locais, obrigação de vender primeiro para eles e por um preço que possam pagar. Diz Thompson que seu estudo não é necessariamente uma fórmula para reformar a economia do presente, mas é uma indicação, uma aviso de que o homem econômico, sempre em busca de maximizar os seus ganhos, é uma invenção do século XIX, invenção nefasta que influencia o mundo contemporâneo e que traz consequências desagradáveis, como pobreza e fome e, portanto, caso continue a ser aplicado, não trará progresso e riquezas como dizem seus defensore, mas mais fome e mais pobreza. Portanto, Thompson traz uma experiência antiga para o presente, amplia o espaço de experiência para aproximá-lo do horizonte de expectativas. Faz como Huxley. Vê o horizonte de expectativas como negativo, com pessimismo. E, para mudar, para reformar o futuro, para melhorar o horizonte de expectativas, seria interessante aproximá-lo de experiências passadas.

Em conclusão, o mundo moderno está desaparecendo. A crença inabalável no progresso, na constante melhora do mundo não sumiu, mas sofreu tremores. E se, como diz Kosseleck, a idéia de progresso é a sintese, o sinal de que, no mundo moderno, a relação entre as suas duas categorias, o espaço de experiência e o horizonte de expectativas se separaram de uma forma nunca antes vista, com o espaço de experiência sendo sempre diferente e pior do que se espera no horizonte, podemos dizer que a relação entre as duas categorias muda quando a crença no progresso muda. Quando dois autores importantes, Aldous Huxley e Thompson, deixam de acreditar no progresso, deixam de atuar no tempo e de interpretá-lo da forma como a idade moderna fez. Mudam a relação entre espaço de experiência e horizonte de expectativas. As duas propostas, como vimos, são de resgate do espaço de experiência, de uma reaproximação entre as duas categorias. Para melhorar o futuro, precisamos torná-lo um pouco mais parecido com o passado.

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